Capítulo Um
A porta do carro se abriu para que eu pudesse descer, e
naquele momento eu senti algo muito estranho e muito forte percorrer o meu
corpo. Talvez fosse medo, talvez fosse só uma insegurança de que nada daria
certo ali. Mamãe estava certa, eu deveria ter esperado pelo menos mais um ano
antes de me ingressar num mundo novo. Encolho-me só de pensar na ideia de algo
terrível acontecendo comigo em meu novo lar.
- Está tudo ai? – Meu pai pergunta assim que fecha a
porta do pequeno Gol atrás de mim. Afirmo balançando a cabeça.
- Tudo aqui – observo minha pequena mala colocada aos
meus pés.
Ele para na minha frente girando nos calcanhares e eu
suspiro, não quero me despedir, tenho medo do que pode acontecer comigo
enquanto estiver aqui neste lugar imenso sozinha. E se ninguém gostar de mim? E
se alguém tentar me matar enquanto durmo?
E se minha parceira de dormitório for uma mala, ou uma ninfomaníaca e levar
garotos sujos e imbecis para dentro do quarto enquanto durmo?
Meu coração bate tão rápido que pode parar a qualquer
minuto.
- É aqui que eu me despeço. – Papai me abraça uma
última vez antes de entrar no carro e partir ladeira a cima. Engulo em seco e
prendo as lágrimas em meus olhos, não quero que as pessoas daqui pensem que eu
sou uma fraca. Tudo bem, Mia. Ano novo e vida nova!
***
O campus da universidade é enorme e várias pessoas
transitam por ele, algumas correm para não perder suas aulas, outras ficam sentadas
na grama lendo um livro, ou namorando, ou apenas observando as nuvens e é isso
o que eu quero. Quero correr para não perder uma aula, mas também quero sentar
para ler um bom livro, ou observar as nuvens, quanto à parte do namorar é
melhor eu deixar pra lá por enquanto, não quero me envolver com ninguém por
agora, apesar de já estar bem enrolada com o Vicente. Suspiro, só de imaginá-lo
sozinho em outra universidade cercado por garotas indecentes e cheias de vícios
me causa náuseas, Vicente é o cara certo para mim e tenho certeza absoluta de
que iremos nos casar assim que nos formar. Afinal de contas fomos feitos um
para o outro.
Desço a pequena estrada de tijolos até encontrar o
prédio de tijolos vermelhos e cheios de janela com um enorme letreiro branco em
cima que diz: DORMITÓRIOS. Olho ao redor, o local está praticamente vazio,
apesar do barulho de música alta. Paro no meio da pequena escada com minha mala
de rodinhas, pego minha bolsa de alça e procuro um papel branco contendo as
informações de onde eu vou dormir pelos próximos quatro anos de faculdade. A
porta se abre e um grupo de garotos enormes e malhados corre na minha direção
com uma bola de futebol nas mãos, um deles passa por mim e quase me derruba,
enquanto tento me equilibrar as rodinhas da mala correm e eu caio estatelada no
chão. Eles riem e eu bufo de raiva e vergonha, meu ano já está começando bem.
- Cuidado por onde anda caloura. – Um deles grita atrás
de mim, posso ouvir sua risada ao longe enquanto a bola quica de um pé para o
outro. Meus olhos se enchem d’água e sinto que a qualquer momento as lágrimas
vão ser mais fortes que eu.
Fico de pé e me ajeito, volto a puxar a mala e enquanto
olho para trás eu o vejo. Seus olhos azuis estão faiscando de tanta malicia e
seus lábios estão retorcidos num sorriso, meu coração dispara e eu não sei por
que, talvez seja raiva, talvez seja vergonha. Não sei ao certo. Ele se vira,
mas antes de fazer tal movimento me mostra o dedo do meio e sussurra um “já
era”. Engulo em seco e dessa vez não consigo prender as lágrimas em meus olhos,
elas caem e rolam por meu rosto, começo a soluçar. As pessoas aqui são piores
que no colégio. Enxugo meu rosto com a manga da blusa e volto a andar repetindo
o mantra que mamãe estava me dizendo antes que eu viesse para cá, para o
inferno. Vai ficar tudo bem, Mia. Vai ficar tudo bem, Mia... Não sei não.
Olho o papel em minha mão enquanto passo de porta em
porta no enorme dormitório. As portas são da cor marrom e os números estão
pintados de branco e há um lance de escadas em cada corredor e eu fico
imaginando o que aconteceria se houvesse um incêndio, já que o prédio não tem
um elevador e deve ter mais de quatro andares. Subo mais um lance de escada
puxando comigo a minha mala que a esta altura já pesa mais que eu. Olho novamente
para o papel e nada, com a sorte que eu tenho meu quarto deve ser no último
andar.
Dito e certo, o quarto é o último do último andar e eu
estou morta de cansaço quando paro diante da porta marrom de número 73. Antes
que eu faça qualquer movimento ela se abre e uma garota de cabelos longos,
pretos e encaracolados me olha com um sorriso estranho estampado no rosto
redondo, arqueio uma das sobrancelhas enquanto examino a figura que me olha dos
pés a cabeça e minhas suspeitas estavam certas, ela realmente tem cara de que
leva os garotos para dentro do dormitório a noite, e tem cara de que faz sexo
com eles sem se importar com a pessoa da cama ao lado.
- Você deve ser a Mia. – Sua voz é rouca e estranha e
seu sotaque é engraçado, parece que ela não é dessa cidade.
Balanço a cabeça afirmando e estico a mão para
saudá-la. Tudo o que a garota faz é continuar me olhando, seus olhos pretos me
examinado de cima a baixo como se eu estivesse melecada com alguma coisa e
institivamente eu passo a mão pelos cabelos enquanto procuro o que faz com que
ela me olhe tanto.
- Prazer, Estela. – Diz por fim apertando minha mão
estendida. – Mas pode me chamar de Ester.
Dou um sorriso fraco e ela se afasta para que eu entre
no quarto. A única luz do lugar provem da enorme janela no centro do quarto. Há
duas camas, uma completamente vazia e a outra cheia de coisas em cima, há
também duas cômodas, uma de cada lado das camas, a do lado da cama vazia está
completamente arrumada, já a outra eu não posso dizer o mesmo. Observo o lugar
como um fiscal sanitário observa os locais ao qual tem que fiscalizar e neste
instante tudo o que passa pela minha cabeça é tentar ao máximo não contrair uma
doença. Tudo está uma bagunça.
Ester fecha a porta atrás de si e se senta numa
poltrona vermelha toda rasgada ao lado do que eu imagino ser sua cama, pelo
visto ela não é muito organizada. Dou um sorriso amarelo para ela enquanto me
ajeito na cama vazia.
- Desculpa a bagunça, não tive tempo de arrumar.
Não digo nada, apenas ajeito minha mala em cima da cama
e rezo para que ninguém tenha deitado ou feito coisa pior em cima dela. Tiro
minhas roupas de dentro da mala e as ajeito em cores, vermelho, azul, preto,
amarelo, branco e etc. e enquanto arrumo sinto os olhos de Ester pregados em
mim.
- O que? – Pergunto girando nos calcanhares para
fitá-la.
Ela está me encarando e estou começando a queimar por
dentro e sei que meu rosto está vermelho, muito vermelho.
- Não acredito que você organiza suas roupas por cores.
– Diz finalmente e eu fito meus pés.
- É melhor que espalhar a roupa por todo o quarto. –
Fito seus olhos pretos.
- Você não vai sobreviver um dia se quer aqui. –
Murmura ficando de pé.
- O que você quer dizer com isso?
- Olhe ao seu redor, ninguém aqui separa as roupas por
cores, ninguém aqui usa a blusa combinando com os sapatos, excetos as meninas
da casa Gama, mas isso não vem ao caso. – Ela sorri. – Preste bem a atenção,
Mia. Se você quer ser notada tem que deixar de lado seu ar de boa moça, ninguém
aqui dorme depois das nove da noite porque os pais querem que você vá para a
cama. – Suspiro, talvez ela tenha razão, mas não vou deixar meus costumes por
causa de algumas pessoas.
- Eu gosto de ser organizada. – Digo por fim voltando
ao trabalho.
Posso ver seu rosto se contorcer e seus olhos se
revirarem, posso ouvi-la murmurando alguma coisa sobre não passar no trote,
talvez eu realmente não consiga sobreviver ao trote, isso é se ele realmente
existir. O que eu soube é que nesse negócio, esse tal de trote, as casas
selecionam os seus participantes e eu não ligo se ficar de fora, afinal de
contas não são as casas que vão decidir meu futuro nessa faculdade. Não vou
deixar de organizar minhas roupas por cores por causa de garotas como a Ester
que fazem tudo do jeito que quer, até rimou.
Termino de arrumar minha cama e ajeitar o enorme quadro
de avisos posto do lado esquerdo da minha e pego uma toalha e minhas roupas
para tomar um banho. Estou exausta.
- Espero que sobreviva no banho. – Ester murmura assim
que passo por ela e bato a porta.
***
O corredor está escuro, muito escuro e silencioso
também, a única coisa que consigo escutar é o martelar de meu coração. Onde
está todo mundo? Olho para o relógio de prata em meu pulso e vejo que ainda é
cedo, se as pessoas aqui realmente não dormem depois das nove, onde é que elas
estão neste exato momento? Estremeço e volto a caminhar pelo longo corredor. Cada
andar possui dois banheiros, um feminino e o outro masculino, as portas dos
banheiros são azuis e há uma plaquinha pintada à mão com os dizeres “banheiro
feminino” e “banheiro masculino”, pelo menos isso, uma vez meu primo disse que
na faculdade dele o banheiro era coletivo e homem e mulher andavam nus por lá,
não quero pensar numa coisa dessas.
O banheiro não é muito grande, há uma mureta separando
as áreas do banho das cabines sanitárias, o chão é de cerâmica branca com
antiderrapante, mas o melhor de tudo é o chuveiro, ou talvez seja eu quem
esteja precisando de um banho para relaxar. A água quente cai por meu corpo e
eu fecho os olhos deixando que ela lave todas as impurezas do meu corpo e da
minha alma, desde o momento em que cheguei aqui, este é o melhor, o mais
tranquilo.
Desligo o chuveiro depois de alguns minutos e me
repreendo por isso, se pudesse ficaria aqui o dia todo. A porta do banheiro se
abre e eu ouço o murmurinho de algumas pessoas, risadas preenchem o lugar e meu
coração dispara de repente eu me lembro das palavras de Ester “espero que
sobreviva no banho”. O que ela quis dizer com isso? Alguém pede silêncio e eu o
escuto perguntar “você ouviu?”, meu coração bate tão rápido que pode saltar
para fora do meu corpo a qualquer momento.
- O que temos aqui. – Uma garota alta, magra e loira
diz cruzando os braços ao redor dos peitos enormes.
Estremeço e sinto meu rosto queimar, estou vermelha dos
pés a cabeça.
A morena atrás dela começa a rir e eu choramingo
baixinho para que elas não percebam que estou com medo. Essas pessoas são como
cães e farejam qualquer tipo de fraqueza da gente, não importa a distância que
estejamos delas.
- Nossa! – Um cara alto, malhado e de olhos pretos e
penetrantes diz enquanto me fita da cabeça aos pés.
Meus olhos começam a se encher de água, preciso ser
forte, preciso ser forte...
- Achei que este era o banheiro das meninas. – Minha
voz sai tremula e eu pigarreio tentando fazê-la voltar ao normal.
- Shiii... Calouros não têm vez aqui. – A loira explode
erguendo um dedo para mim. – Agora, o que faremos com você? – Seus olhos estão
cheios de malicia e eu estou tentando me controlar ao máximo para não tremer.
Medo, medo, medo... É isso o que toma conta de mim
neste exato momento.
A porta se abre novamente e ouço mais vozes, dessa vez
todas de homens. O que está acontecendo aqui? Achei que houvesse restrição de
sexos nos banheiros, afinal de contas para que servem aquelas plaquinhas?
- Eu só quero voltar pro meu quarto em paz. – Digo a
voz voltando a tremer só de imaginar o que estas pessoas vão fazer comigo.
- Aposto que é bem lisinha. – Um cara baixinho e moreno
diz lambendo os lábios e eu faço uma careta de nojo.
Aperto a toalha o mais forte possível em meu corpo, mas
me sinto como se estivesse realmente nua, os olhares que aquelas pessoas me
lançam, principalmente os homens e então um rosto familiar toma forma em meio
ao aglomerado de pessoas, ele está parado olhando para mim e seus olhos azuis
transmitem pura malicia e vejo que se diverte com este momento. As lágrimas
começam a descer e eu seco o rosto com a palma da mão esquerda que está livre,
enquanto seguro a toalha firmemente com a direita.
- Pegue as roupas dela, Jes. – A garota loira diz para
a morena que se move como um foguete em direção as minhas roupas, estou
tremendo e meus olhos estão arregalados.
- Por favor, deixe-me voltar pro meu quarto. – Minha
voz sai arrastada e eu fungo o nariz passando o polegar e o indicador por ele.
- Por favor, deixe-me voltar pro meu quarto. – A loira
repete com uma voz estranha fazendo com que todos riam. Todos exceto ele, seus
olhos estão presos em mim, em meu corpo, em minha toalha e eu acho que sei o
que se passa em sua mente pervertida.
- Lucas. – A morena que pegou minhas roupas chama e um
garoto alto, branco e bombado para ao seu lado. – Yuri. – Um chinês de mais ou
menos dois metros de altura para do lado do rapaz. – Tirem a toalha dela, vamos
ver quanto tempo ela leva para chegar ao quarto. – Diz e minhas pernas tremem e
eu quero morrer.
